quinta-feira, fevereiro 22, 2007

10. SOBRE TERTÚLIAS

No seu livro “Máscaras de Salazar”, Fernando Dacosta, recordando a vida dos cafés lisboetas durante a época do Estado Novo, conta:
“A ronda dos cafés tornara-se-nos um circuito de aconchego, de revitalização. Montecarlo, Monumental, Grã-fina, Vá-Vá, Mourisca, Smart, Paraíso, Pilar, Coimbra, Paulistana, Alsaciana, Cister, Tentadora, Veneza, Paladium, Nicola, Suíça, Garrett, Brasileira, eram rituais tertúlicos de encontros, de conhecimentos, de convívios, de afirmações, de oposições – prolongados, madrugada fora, pelo Estábulo, pelo Rei Mar, pelo Z, pelo Snob, pelo Botequim. “ (pág. 194).
Tertúlias era isso: um local de encontro onde se cruzavam caminhos e desejos. O Vá-Vá foi um deles, durante muitos anos, e, apesar das transformações, e muito por causa dos seus fiéis clientes, ainda continua a ser uma casa de aconchegos, de afectos, de amores e desamores, de amizades que se prolongam.
O que é a tertúlia senão isso mesmo: onde nos sentimos bem, onde cruzamos olhares com amigos, onde se fala noite fora, de tudo e de nada, mas onde se sonham todos os sonhos, sendo que o mais importante, para lá dos livros que se imaginam, dos quadros e das músicas que se criam, dos regimes que se derrubam, das corrupções e trapaças que se denunciam, dos filmes e das peças de teatro que se projectam, dos empregos e desempregos que se lastimam, do banco, da Tap, da loja, da roupa, da moda, da escola, sendo que para lá de tudo isso o mais importante é a amizade que se cultiva. Dentro e fora da tertúlia, mas onde a tertúlia desempenha um decisivo papel aglutinador.
Ora gostava de falar um pouco de amizade. O que é? Não se sabe descrever, mas sente-se. Por exemplo, o Raul Solnado. Sou amigo do Raul Solnado há mais de quarenta anos. Ele não o sabe, certamente. Mas comecei a ser amigo dele quando o via na revista e no Zip Zip. Era um dos meus heróis. Interessava-me por tudo que a ele dizia respeito. Não perdia uma peça ou um programa de televisão. Ficava feliz com os seus êxitos e triste se algo lhe corria mal. Eu era nessa altura um dos muitos milhares de amigos que ele tinha dispersos por Portugal e pelo mundo. Querer bem a alguém que nos paga com o prazer da sua companhia é amizade. Não tenham dúvidas de que fui amigo de John Kennedy, de Marilyn Monroe e da Princesa Diana. Sofri por eles. Hoje sou amigo do Paul Auster, da Paula Rego, do Woody Allen, e da equipa e do treinador do SCP. Eles podem não saber, mas interesso-me por tudo o que lhes possa acontecer, torço por eles, sofro por eles. Era assim também com o Raul Solnado. Eu sabia, ele não sabia.
Um dia apareci pelo Zip Zip, falámo-nos, eu fiquei mais amigo, ele conheceu o puto que se interessava por cinema e teatro. Anos depois, em 1966, um amigo comum, o Artur Ramos (que merda, os amigos irem desaparecendo, um a um!), convidou-me para ser assistente de uma encenação sua no Villaret. A peça chamava-se “Guerra do Espanador”, assinava-a Neil Simon, era divertidíssima, o Raul era o protagonista, ao lado de actores como Barroso Lopes, Isabel Ruth, Isabel de Castro, Francisco Nicholson, Luis Pinhão e Pedro Pinheiro. Quem nunca pisou um palco deserto, um palco em ensaios, um palco em representação, não pode saber o prazer que provoca. Estar ao lado do Raul, do Artur Ramos, de todos os outros, é algo que não se explica, sente-se e fica-se mais amigo. Depois foram anos de convívio entrecortado por ausências, mas a amizade tem isso de espantoso. As ausências não contam. A amizade é um sentimento que se mantém latente. Um dia recebe-se um telefonema, depois de meses sem se saber nada de alguém. Do lado de lá, esse alguém identifica-se: “Lauro, é o Raul, estou na Madeira, no Centro de Artes onde esteve, isto é muito bonito, são todos muitos simpáticos.” Se for um amigo, rejubilamos, aquecemos, gritamos lá para dentro: “Eduarda, era o Raul, está na Madeira feliz da vida!” Se não for um amigo, pensamos: “Que é que este chato quer?”.
O amigo mantém-se em banho-maria sem perder qualidades. Anos mais tarde, dirigi o Raul num conto de Natal para uma noite de 25 de Dezembro da RTP. Foi um duplo prazer, reencontrar o actor e o amigo. Julgo que é um dos grandes trabalhos do Raul. Um papel duplo de rico e pobre, a que empresta uma humanidade e uma emoção sem limites. Depois disso, foi membro de Júri de todos os meus festivais de cinema, em Seia, em Famalicão, em Portel, por onde vai passando vai estreitando mais amizades com quem já as tinha, e vai lançando as sementes de outras. Não é pessoa que ninguém esqueça facilmente. Por isso me lembrei dele para abrir estas Tertúlias do “Vá-Vá.Diando”.
“Vá-Vá.Diando” é nome de um blogue que escrevo a meias com a Isabel Mendes Ferreira. Surgiu a ideia depois de um reencontro nosso, aqui no Vá-Vá, onde nos havíamos conhecido há vinte anos, ou mais. Éramos mais jovens e bonitos. Continuamos bonitos. Sobretudo ela. Falamos de recordações, ela disse que nós íamos “vává.diando”, eu sugeri um blogue a quatro mãos. Continuávamos amigos. Vinte anos e muita vida depois.
Blogues e tertúlias de cafés têm muito em comum. São locais de conversa e de amizade. De cultivo diário. Ou mais espaçado. Por isso hoje aqui se reúnem amigos certos e prováveis amigos do café e dos blogues. Sim, porque blogues meramente virtuais podem ter graça, mas são muito redutores. Os blogues servem precisamente para isso: para dar o salto para o frente a frente, os olhos nos olhos, a amizade com olhar, cheiro, pele. Aqui estamos. Para a tertúlia dos cafés de sempre com os blogues do presente, para a amizade do futuro.
LA

15 comentários:

Ana Paula Sena disse...

L.A., gostei muito deste texto, por várias razões, mas sobretudo pelo seu tom positivo. Realmente, não há nada como a amizade e é bom encontrar novas formas de a cultivar sempre, unindo passado e futuro na sua expressão e em especial, na sua vivência. Sempre gostei muito de saber do passado e foi com muito gosto que pude saber das suas recordações em conjunto com o Raul Solnado. Alguém que eu sempre admirei e admiro.
Tomara que estas tertúlias que contam com a sua iniciativa possam ser esse lugar certo para reviver e criar a amizade!
Com a amizade da A.P.

Anónimo disse...

o menino ainda me há de contar como assim se escreve. bem. como a água lisa a deslizar sobre as ondas de um mar....é dificil..sabes?


obrigada. pelo ontem. por todos os ontem que a vida nos deu ao correr da memória real.


foi especialmente bom. valeu a pena sair da concha.

excelente anfitrião.


o abraço. vadio mas constante.



isabel piano...:)))).

Lauro António disse...

Ana, Isabel, e todas e todos os que lá estiveram, e mesmo algumas e alguns que, não estando, estiveram: foi muito bom. É sempre muito bom sentir o calor humano, sentir a emoção, sentir a companhia, sentir que não se passa por aqui impunemente, sentir que todos nós vamos deixando rasto uns nos outros, e que a memória e a presença desse rasto é boa, muito boa.
Um beijo com muito vává.diando.

vague disse...

Bom dia !

Gostei particularmente do ambiente afectuoso e da simpatia de todos.
Obrigada :)

Vague hoje com o olho um pouquinho menos vermelho!

Lauro António disse...

Vague: a afectividade foi de todos e todas. Sua também. Um prazer conhecê-la. As melhoras.

Maria Eduarda Colares disse...

Foi bom. E tenho a certeza de que também lá estavam o Manuel Guimarães, o Sam, o Manuel de Azevedo e o Costa e Silva, o Camacho, e tantos mais, a recordar como era bom falar pela noite dentro (menos dentro do que gostaríamos, mas enfim)no Vá-vá. Faltam os sofás do Petrónio, mas não se pode ter tudo.
Acredito que alguns dos que estiveram voltarão e que muitos mais se juntarão quando souberem que voltou a ser possível vavadiar.
Obrigada pela ideia.

inominável disse...

parabéns a todos por ontem... parabéns a ontem por nos ter juntado...

a repetir em doses excessivas!

Lauro António disse...

M. para ti um beijo, aquele de sempre - Beijo com décadas de vavadiando.
Inominável - foi muito bom, acredita, conhecer-te assim. Tu sabes: Só nós 2! Quanto á tua amiga, que não desapareça: uma brasileira simpá é sempre benvinda. Beijos com muita ternura às duas.

Lauro António disse...

M. para ti um beijo, aquele de sempre - Beijo com décadas de vavadiando.
Inominável - foi muito bom, acredita, conhecer-te assim. Tu sabes: Só nós 2! Quanto á tua amiga, que não desapareça: uma brasileira simpá é sempre benvinda. Beijos com muita ternura às duas.

Göttlicher Teufel disse...

liberdade

Bandida disse...

foi bom vá.vadiar por lá. muito bom. e de memórias nos vamos sustentando. obrigada, Lauro, Eduarda, e todos que fizeram desta noite um bom copo...

e obrigada pelo afinado coro de parabéns!



beijos meus


B.
_______________________________

Isabel Victor disse...

Amigos vadios venho aqui celebrar convosco o meu dia de aniversário ! Na página de hoje do " Caderno de Campo", deixei-vos beijos suspensos de uma certa arvore ...

IsabelVictor

Eric Blair disse...

Hum, na toca Y?
Mi liga, vai...

Lauro António disse...

Eric Blair: quem te liga, vai? Somos muitos /muitas por aqui. Será chuva? Será vento? Eu não sou certamente.

Lauro António disse...

aquele Y maroto!