domingo, dezembro 24, 2006

9. NATAL EM ALCOCHETE



Sentei-me na mesa do fundo, como de costume, mas desta feita trazia um livro de casa, que coloquei em cima do saco de plástico onde me tinham agrupado os jornais de sábado, que são sempre muitos (“Diário de Noticias”, “Público”, “24 horas”, em revista, “Correio da Manhã”, agora com os suplementos, o “Sol” e o “Expresso”). Trouxeram-me ainda o “Record” e a “A Bola”, da casa, por onde gosto de dar sempre uma vista de olhos (tempos houve em que comprava diariamente também um destes “desportivos”, agora é só de vez em quando). Enquanto esperava o “panado no pão” e o café, abri o “Conto de Natal”, de Dickens, que comecei a folhear procurando encontrar um trecho que gostava de citar, e eis que me cai para o chão uma folha de jornal, dobrada em quatro, do “Comércio do Porto”, onde em tempos, num Dezembro, escrevera uma crónica que agora me ressuscitava ali, de salto, como que por encanto. Chamava-se “Natal em Alcochete” e, logo a seguir, vinha a dedicatória: “para o Frederico, que não estava lá”.
E li:
Faz agora anos, mais dia, menos dia, mas de certeza por esta altura do Natal, fui à Moita animar um colóquio sobre Cinema e Comunicação Social, durante o qual se exibia o eterno “Citizen Kane”. Lembro-me de uma bela biblioteca municipal, com boas instalações e muito leitores jovens desfolhando jornais e livros. Era uma tarde de sábado, fria mas não chuvosa, e à saída, caia já a noite, passeamos pela localidade, eu, a Eduarda e a nossa amiga Sofia, porque o meu filho Frederico, que também não costuma perder estes "acontecimentos", estava longe, no Funchal, a ultimar a estreia de "Amália". Tomámos um chá numa aprazível casa do dito, no largo central da localidade, deambulámos pelas ruas, espreitei um velho cinema numa esquina da avenida principal. A noite continuava a cair sobre este Ribatejo afinal situado no "além-tejo", e metemo-nos no carro para regressar a casa.
Pelo caminho, em direcção à ponte Vasco da Gama, apareceu a indicação do desvio para Alcochete. Alguém lembrou a excelência de alguns restaurantes, e como era hora de jantar, resolvemos prolongar o passeio, desviar para a terra do "colete encarnado" e aproveitar por mais algum tempo o preguiçar daquela noite de doce inverno.
Entrámos em Alcochete por uma estrada que bordeja o rio, donde se avistam Lisboa e Almada, feéricamente iluminadas, por milhares de pontos luminosos que o reflexo nas águas do rio multiplica por milhões. O Tejo estava plúmbeo, ameaçador e sombrio, bem no centro do seu caudal, que por aquelas zonas é majestoso (lembrando-me sempre o drama de “Tarde Demais”, o filme de José Nascimento) mas, junto às margens, e por baixo da ponte, a luminosidade faiscava e coloria de fascínio aquele momento.
À procura de local para estacionar o carro, fomos parar ao largo de S. João, com a Câmara a dominar o espaço, a bandeira do Sporting hasteada no núcleo de adeptos da região, uma loja "Super Útil" aberta a desoras, deixando escorregar para o exterior do passeio a oferta de várias decorações de Natal que iam soltando o desejo nos olhos de alguns miúdos que aí paravam. Sem o saber, estava a começar o meu "Natal em Alcochete".
Não sou um entusiasta de toureio, ainda que admire a beleza do violento bailado que opõe homem e animal no centro do redondel; ser forcado nunca foi um sonho de criança, nem de adulto (apesar da coragem do acto gratuito de pegar um touro de caras seja invejável); nunca fui um frequentador assíduo das Festas do Colete Encarnado (muito embora as festas populares portuguesas, de norte a sul do País, me fascinem). Nada me faria apaixonar por Alcochete, mas de repente, Alcochete, as suas ruas estreitas, os seus largos elegantes, a pequena igreja a encimar o jardim, e as luzes natalícias a iluminar a noite criaram uma imagem que dificilmente esqueço.

Aquela terra que nas tardes de verão escalda e lança no ar a poeira levantada pelos touros em largada, aparecia agora como uma miniatura de cidade de Natal com as suas casas iluminadas por dentro e por fora, grinaldas de lâmpadas suspensas no ar, as janelas e portas festivamente engalanadas e abertas para o exterior. Subitamente, a delicada elegância do todo dominava. Por vezes, o toque aristocrático ou simplesmente abastado das casas apalaçadas impera, mas o que predomina é mesmo o ingénuo sentir popular. Imaginei as mãos calejadas de um duro dia a dia a afagar as grinaldas de verdura, a dispor as figurinhas do presépio, a colocar os fios de luzes nas árvores de Natal, a dispor as bolas prateadas e douradas, a colar nos vidros das monstras das lojas o algodão em rama das "Boas Festas e Feliz Natal".
Há quem fale da hipocrisia do Natal, da mentira de alguns gestos com que se mascara a violência diária, do consumismo que se apossa das pessoas, da falta de sentido de uma festa que não se devia circunscrever apenas a uma época do ano mas ser uma constante. È evidente que muito melhor seria ter este espírito de fraternidade e solidariedade ao longo de todo o ano, mas também é verdade que a vida é feita de altos e baixos, de dor e alegria, e que é da sua mutação que se faz a experiência. Sem dor não se saberia dar valor à alegria. Era bem escusado viverem-se alguns estádios de dor extrema, provocados pelos próprios homens, conscientemente, mas são momentos com estes, que o espírito do Natal instila, que tornam por vezes suportáveis muitas agruras anteriormente vividas. Por isso não será nunca demais exaltar estes momentos de pacificação dos corações, sentidos por crentes e não crentes, que todavia se deixam tocar por essa ilusão de magia.
Por esse Portugal fora, de norte a sul, há agora milhares de Alcochetes esperando o olhar emotivo e a surpresa da descoberta de um som, de uma luz, de um sentimento de maior humanidade (e de algum milagre, mesmo que este seja um milagre puramente humano!). O meu Alcochete de há uns anos, é, eu sei-o, apenas um símbolo. Ali se reuniram as condições para a cidade me surgir aos meus olhos numa leitura muito pessoal de felicidade possível. Foram as presenças e as ausências sentidas, foi a luz e a música no ar, foi o traçado das ruas, foi a harmonia das cores, foi o encantamento de um segundo de felicidade possível. Foi o espírito do Natal a evocar as saudades do filho distante, o pai perdido há muito, a certeza daqueles que nos rodeiam. O ano passado, foi em Alcochete, podia ter sido no Porto, a passar por tantas obras, mas sempre sedutor, perante um presépio humano numa aldeia da Madeira, nas ruas apinhadas de gente de Londres ou de Nova Iorque, numa aldeia perdida na serra da Estrela, na praça central de Viana do Castelo, no aconchego da casa em Lisboa. Podia, pode e deve ser em qualquer local. O pretexto é um menino nas palhinhas, uma árvore de Natal, o musgo arrancado a terra, um simples fio dourado e uma fileira de luzes colocados na montra de um talho ou numa "loja de 300". É um pretexto que vale a pena para uma viagem sem destino pelas ruas de uma cidade ou pelo interior de nós próprios, em busca de uma razão para viver.
P.S. Há dias voltei a Alcochete. Continuava Natal. A ameaça de desilusão que me acompanhou na viagem de ida, dissipou-se à volta. O que quer dizer que cada um de nós tem um Alcochete muito perto de si. Basta descobri-lo e atravessar a ponte. Uma ponte que nos leva até ao mais íntimo de nós e dos outros. Uma ponte que nos faz regressar à infância e nos projecta no futuro. Nos outros. (22.12.2000)

A leitura recordou-me tantas coisas, tantos Natais, tanta alegria, tanta tristeza, tanta vida vivida com os altos e baixos de quem só sabe viver com paixão. Mantendo-me nesta história, tenho de acrescentar algo mais. Uma espécie de PS, agora de 2006: Depois desta viagem, muitas outras vezes voltei a Alcochete e, uma delas, precisamente para passar o Natal, em família, com o Frederico que, entretanto, se perdera de amores por uma bela actriz-cantora-fadista que conhecera nos ensaios de “Amália”, e que fora com ela viver, imaginem!, para uma casa de Alcochete. Como as coisas são, e as voltas que a vida dá (podia continuar com os provérbios populares indefinidamente!). Por Alcochete tenho passado e continuarei a passar, se a tanto me derem tempo e saúde. Gosto da luz destes dias, gosto daquela mistura de cidadezinha de conto de fadas (e de “academia” dos sonhos sonhos!), gosto do frio de Dezembro junto ao rio, gosto do Natal, continuo a gostar. Por isso aquele Alcochete se mantém na minha memória, como tantas outras referências natalícias, que tanto me apetece recordar nesta altura, e de que tanto gostaria de ter engenho e arte para escrever/descrever. Fica o que a sorte e o talento permitirem. Por agora.

(Bom Natal, Isabel, colega de poiso, Bom Natal leitores/as de boa vontade.)

As fotos não são de Alcochete, no Natal, porque não levei a máquina nesse dia.

Mas são do Tejo visto de Alcochete, num fim de tarde de Verão.

domingo, dezembro 17, 2006

8. UM SMS DE MEMÓRIAS


Ontem, de um amigo de há longos anos, recebi um sms. O telemóvel tocou, voltava eu do Porto, num Alfa. Estava a chegar a Lisboa, já tinha rede. “Tem uma nova mensagem”, li. Abri: “Lauro, de repente remetem-me para um blog que desconhecia e para um doce vavadiar. Texto de extrema saudade, convite nostálgico, viagem de olhares e memórias que muito me emocionaram. Em breve aterrarei por aí para matarmos saudades. Até breve. Abraço amigo. Mário.”
O Mário é um amigo de há muito. Um daqueles amigos que às vezes estamos anos sem ver, sem nos falarmos mesmo, mas que sabemos, lá e cá, que onde quer que estejamos, somos amigos. A amizade cultiva-se, é bem verdade. Mas há amizades que pegam de estaca, que não morrem senão como as árvores, aquelas que “morrem de pé”.
O Mário conheci-o no Vává. É amizade nascida num café. Eu escrevia sobre cinema há muitos anos, fazia já um ou outro filme, ele acabara de se formar em direito, gostava de cinema. O cinema aproximou-nos. Fizemos revistas de cinema em conjunto (o “Isto é Espectáculo” e o “Isto é Cinema”), e depois foi meu assistente de realização na “Manhã Submersa”, imaginem lá, no ano de 1979, Inverno bem Inverno, a chuva, o vento, a neve em plena Serra da Estrela bravia, o quartel general em Seia, as filmagens em Sintra, em Seteais, em Lisboa, ali para os lados de Xabregas. Os miúdos e a gritaria, anos ainda quentes de pós revolução, as dificuldades que brotavam dia a dia, a falta de dinheiro de um orçamento de fome que muitas vezes me era ocultado, precisamente pelos assistentes e pela produção para eu não perceber as aflições, o saudoso (saudoso é pouco!) Vergílio Ferreira como actor, os actores, tantos e todos admiráveis, a Adelaide João, um exemplo entre dezenas de outros, a filmar com as mãos enfiadas num riacho, junto ao castelo de Linhares, e a chorar com o frio da água gelada a gretar-lhe a pele, sem nada me dizer, para não atrapalhar as filmagens que tinham de ser rápidas, a Eunice a surgir uma noite num dos corredores da estalagem de Seia, preparada para as filmagens do dia seguinte, transfigurada em Dona Genevova, qual fantasma retirado da minha imaginação, personagem de um sonho que súbito toma forma e voz, a estreante Maria de Lurdes Martins e a veterana Maria Olguim, duas criadas que marcavam o filme com o desejo que se anuncia e a figura da mãe distante, o filme a fazer-se e outros projectos a iluminarem-me já a vontade de prosseguir, uma adaptação de um peça de teatro do meu querido Miguel Franco, “O Motim”, e a procura de locais de filmagens, de cenários, uma visita a uma capela ali para os lados da calçada de Carriche, eu e a Eduarda, que fotografava, o Mário e a Ana, essa mesma Ana que depois se tornaria actriz célebre, sentados à sombra das árvores, trabalhando com sugestões e namoriscando, as “reperages” para uma biografia de Florbela Espanca que nunca acabei por realizar, mas que nos levou a Vila Viçosa e a Leixões, mais os projectos que se recordam como “projectos” do que os que se conseguiram concretizar, contabilidade mortiça de uma terra de desilusão e frustração, este doce e amargo Portugal, onde os amigos são certos, mas as invejas e as traições não são menos seguras.


E tudo começou, começava, começará numa mesa de café, perante um café ou um almoço no “Vává Pobre”, como em jeito de paródia se definia o lado direito do café-restaurante, que reserva o seu “cotê gauche”, o “Vává Rico”, para almoços e jantares de “uma outra substancia”, ou porque as circunstância o impõem ou porque os comensais o exigem. A formalidade do “Vává Rico” quase sempre me afastou da sala onde impera um óleo da Manuela Pinheiro, para me instalar no bulício da área onde o que predomina são dois painéis de azulejos da Menéz.
O Mário, depois de longos anos convívio cinéfilo, seguiu por outro caminho, a diplomacia, viajou oficialmente pelo Egipto e o Luxemburgo, a Bélgica e França (em Paris, cruzámo-nos, já todos casadíssimos e com filhos), agora anda por Lisboa há uns anos, e, vá-se lá perceber a vida, ele lê-me agora em blogues e eu sei dele e da família por amigos comuns, como o Fanan. Lá de tempos a tempos um telefonema, e o adiar de um jantar para por a conversa em dia. Mas a amizade é isto, um café como porto de abrigo, nem que seja abrigo de memória, de memórias. As amizades fazem-se também de memórias e de promessas: um dia vamos jantar, ou almoçar, ou tomar um café. Conhecemo-nos meninos e moços (ele mais menino e moço que eu), agora já temos mortos amigos a demarcar a estrada, tantos já, ao lado de tanto momento bom para festejar, e não desistimos, ainda há muitos cafés para tomar, numa mesa de um qualquer lugar por esse mundo fora.

Isabel, este foi um sms de memórias. Muito pessoais. E de promessas. As memórias nunca se apagam. À mesa de um café recordam-se muitas. À mesa de um café imaginam-se e constroem-se tantas outras. Um dia destes, nesse mesmo café, procuraremos cimentar antigas amizades e inventar novas, novos projectos, novas paixões, novos desejos. Enquanto se bebe um café e se trinca a vida. Até que ela nos trinque, vamos petiscando.

LA

CONTRIBUIÇÃO EXTRA - 1

Um extra retirado



«No meu quadro do café à noite procurei exprimir
que o café é um lugar onde podemos arruinar-nos,
ficar loucos, cometer crimes.»

Van Gogh, 23 de Julho de 1890.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

5. ACHO QUE VOU ESCREVER UM TEXTO A COMEÇAR ASSIM...

.........
Agora a sério: nunca mais vens tomar café comigo?
Deixas-me assim, isolado, numa mesa de café?
Ao sabor das recordações?
(Acho que vou fazer um texto a começar assim!).
Beijos
(alegro, ma non tropo!)
..........

É Dezembro, chove, cargas de água diluvianas, vejo-as cair através do vidro da montra do café. Hoje sentei-me aqui, junto à porta, a ver a chuva cair. O café desaparece atrás de mim, numa névoa sem rosto. Imagino um quarto de hotel, imagino uma cigarrilha forte, das que sabem bem e arranham a garganta, imagino um café bem preto e um copo de água gelada, imagino um livro, um bom livro, denso e forte, daqueles que colam as páginas aos nossos dedos, e não os largam, e vamos cavalgando por sobre as letras com a volúpia da descoberta, imagino a mulher que amo, um rosto num corpo nu a emergir de um cobertor grosso mas macio, que a envolve quase por completo, deixando apenas a cabeça, e os cabelos negros, longos, fortes, deitados sobre o meu ombro. Leio para ela palavras que resumem emoções, ela espreita as páginas do livro, lidas de esguelha, coloco o livro de lado, olhamos ambos a chuva a escorrer pelo vidro, depois de o bater sem piedade, com gotas vigorosas.

foto roubada à IMF

- Gosto de um quarto de hotel, uma tarde de amor, a chuva na janela... Gosto desta sensação de calor, de intimidade resguardada, de esconderijo secreto, de “ninho de amor”, como lhe chamavam as românticas do século XIX. Gosto de me aconchegar nos teus braços, gosto deste ruído martelado, cadenciado, monótono, que adormece, gosto de despertar ao teu colo, embrulhada neste cobertor roubado à cama que acabamos de desfazer, gosto dessa cama desfeita, e gosto de te ouvir ler para mim… Continua…
Volto a olhar o livro. É David, perfeito, absoluto, sem mácula. O David que eu recordo das aulas da universidade, dos corredores, das revoadas de alunas à sua volta, presas da sua voz, do seu olhar, do cachimbo que nunca esquecia, da poesia envolvente que aquecia os anfiteatros.
Passo a mão por dentro do cobertor, por baixo do braço dela, a mão descobre-lhe o seio, acaricia-o, pousa sobre ele, sente-o e satisfaz-se com isso.
A minha voz é rouca, o café amacia-a, a cigarrilha enrouquece-a, a mulher a meu lado tira-me a respiração, não, nada disso, deixa-me respirar profundamente, abre-me o peito, permite-me oxigenar os pulmões, dá-me mais vida, neste boca a boca de amorosos escondidos do mundo num quarto de um quarto andar de hotel, 410, “dá para a frente”, sossegado, discreto, único.
A minha voz é rouca, e leio-o para ela ouvir. Chama-se “Ternura”.
- Ouve, é para ti:

“Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...
.
Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...
.
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
.
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!” (*)

- Muito bonito. Re-inventámo-lo hoje.
- Não. Nós não o re-inventámos. O David antecipou-se. Escreveu, imaginou, inventou o que hoje aqui iria acontecer. Repara na “roupa no chão: que tempestade!” Olha os “vultos perdidos na cidade em que uma tempestade sobreveio...” Olha a tempestade que rebenta lá fora, a tempestade que se aclama cá dentro, o vidro da janela a separá-las, ou se calhar a uni-las, ligar uma à outra, a fúria dos elementos em desnorte…
Regresso ao café, o vidro da monstra, o cheiro forte da segunda bica ainda fumegante, o caderno de folhas brancas, por cima dos jornais, a esferográfica entre os dedos, as palavras que se vão soltando, uma a uma, da memória do quarto de hotel para a planície branca do papel. Uma a uma, as frases, faltas-me tu no meu ombro, o cobertor à volta da tua nudez, mas a ternura permanece, apesar da tua ausência.

Viajante inseguro
Na noite

Percorro as paisagens do teu corpo
Imagino colinas e vales profundos
Grutas perdidas e achadas

Ouvem-se gritos de desespero
E gemidos de desejo - mortos na garganta

Viajo na noite do teu corpo
E perco-me, perdendo-te
Nesse labirinto de esperma e suor.

Nunca serei David, penso. Mas nem só de génios vive a Humanidade. São recordações sob a forma de palavras reunidas na emoção do momento. São recordações do passado enquanto se esperam as do futuro. Por debaixo do caderno de folhas brancas, vários jornais do dia. Um desportivo, “da casa”: “Sporting derrotado pelos russos, saltas das competições europeias.” Merda!, é sempre a mesma coisa! Nos momentos essenciais, o colapso.
- Zé Manel, quanto devo? O jornal está aqui… Só desgraças...
Lá fora a chuva continua a cair. Tu não apareceste.
_____________________
(*) David Mourão Ferreira, “Ternura”

sexta-feira, dezembro 01, 2006

4. O CAFÉ É UMA CASA DE HÁBITOS



Esperava encontrar-te por aqui um dia destes. Inesperadamente, já que tu não disseste que vinhas. Pelo contrário, até afirmaste que antes do dia 10 seria difícil, mas quem sabe? Saudades? Não te tenho visto.
Eu continuo a aparecer, ou não fosse esta uma espécie de minha segunda casa. Nestes dias, logo ao entrar tenho pensado que a instituição “café” é realmente um local estranho. “Este” café. Não o café onde se vai uma vez por acaso, porque estamos de passagem e nos apetece uma bica ou um cimbalino. Esse é o “café expresso”, onde se vai expressamente para uma necessidade precisa, onde se toma o café ou a Coca Cola, onde se come quando se tem fome, ou onde se lê o jornal do dia quando se está cansado de visitar monumentos. São os cafés que ficam longe de casa, longe do nosso bairro, longe da nossa cidade, longe do nosso país. Tenho descoberto cafés fantásticos. Muitos, tenho até fotografado. Imagine-se a fixação em cafés que até pensei fazer uma exposição de fotografias dos cafés que fui visitando e fotografando ao longo dos anos. Infelizmente, ao longo dos últimos três ou quatro anos, pois a ideia surgiu tardiamente. E como quase nunca ando com a máquina, não são muitos, mas são já bastantes.
Há, portanto, o café ocasional, pode até haver o café sazonal (todas as vezes, ou quase, que vou ao Porto, não deixo de fazer uma visita ao “Magestic”, por exemplo!), mas há o fiel café de todos os dias, onde não vamos apenas porque queremos tomar a bica, mas porque a ida a esse café se tornou um hábito, uma necessidade em si mesma.
Um café pode ser mágico, surpreendente, vistoso, bonito, mortiço, pode ir de uma quase taberna a um restaurante de luxo, pode ser acolhedor ou inóspito, pode ser mais leitaria ou mais cervejaria, pode ser um pouco de tudo. O que quer que ele seja, tem os seus frequentadores habituais. Para muitos é simplesmente um imperativo, uma sujeição, um destino, está ali, mesmo ao dobrar da esquina, é o único que se vê nos quinhentos metros mais próximos e acostumamo-nos. “Olá, Senhor José, é a biquinha do costume, com um copo de água bem fresquinha!” Toma-se ao balcão, quando se sai a correr para o emprego, ou na mesa, quando se chega cansado do trabalho, dura trinta segundos de um trago que se engole, paga, e se guarda quente na garganta durante mais algum tempo, ou toma-se pausada, pela tarde adiante do reformado que tem mesa reservada e nela passa a arrastada solidão do fim do dia.
No meu café há de tudo, por camadas horárias. O dia divide-se em estratos. Logo pela manhã entram aos bandos, em revoadas, os executivos, os bancários, as meninas das lojas, os empregados dos serviços, os estudantes da escola mais perto, ou da Universidade mais longínqua, tomam o pequeno almoço, compram o jornal, quase tudo a correr, uma olhadela nas noticias, enquanto se mastiga o croissant, se bebe o galão, o café, num caso ou noutro se emborca a primeira “bejeca” quando há “obras” por perto (antigamente, era o copo de três, tinto, para dar forças para a jornada).
Lá pelas 10 horas, estendendo-se até quase ao meio dia, aparecem “as donas de casa”, em bando também, mas estes são bandos fixos, de residentes, que se instalam em várias mesas, que juntam, e por ali ficam a comentar as últimas da (ou das) telenovela vista na noite anterior, o “big brother” ou coisa equivalente, ou o caso de fulana de tal que fugiu de casa, o filho da sicrano que se mete na droga, foi apanhado a roubar as pratas da avó, o marido da y que tem uma amante, ou foi promovido, reformado ou morreu, “coitado, estava sentado na sala, a ler, quando a Júlia o foi encontrar já estava roxinho…”
Assim vamos até à hora de almoço, onde as senhoras saem para ir ultimar as suas refeições, em casa, e entram no café, novas revoadas, os executivos, os bancários, as meninas das lojas, os empregados dos serviços, que se instalam ao balcão a devorar “doses” ou se dispersam pelas mesas a degustar refeiçõezinhas. Não, não estamos no Norte, são mesmo refeiçõezinhas, alegremente regadas com cerveja, vinho, refrigerantes ou água e ainda conversas sobre política, ordenados, futebol, uma ou outra questão pendente no escritório. São bancários, arquitectos, pessoal da TAP, advogados, empregados avulsos…
Os almoços estendem-se da uma até hora indeterminada, dado que há sempre os retardatários, como eu, que tanto aparecem uns dias à uma outros às três, às quatro, tanto comem uma refeição completa, como dois croquetes e uma coca cola, tanto ficam uma hora na mesa como cinco minutos ao balcão.


Depois, lá vem a tarde que se estende sorna, com os habituais fregueses a prolongarem o almoço até às quinhentas, primeiro o jornal da casa, depois o desportivo, um whisky, mais uma conversa, a análise detalhada da facturação dos bancos, mais um descafeinado, o totoloto, depois escrever umas notas num papel amarrotado, a ida à casa de banho, cumprimentando todos os restantes frequentadores, voltar a sentar na mesa… e assim se passa mais uma tarde, “esta é a minha casa, sabe?, não tenho onde ficar, não quero estar sozinho em casa, venho para aqui, sempre vou vendo gente, conversando, distraindo-me.”
São alguns, todos com os mesmos motivos, criam um campo de papoilas mortiças disperso pelas mesas do café: uma aqui, atrás do vidro da fachada, outra no meio da sala, na passagem, para todos o terem de saudar, uma mais envergonhada encostada à parede da sala do fundo, uma virada para a parede, passando a tarde concentrado na resma de jornais que trás consigo, são cabeças de papoilas grisalhas, que esvoaçam à passagem de quem entra e sai.
Ao fim da tarde, era costume aparecerem alguns dos que vieram almoçar, tomar uma cerveja para o caminho, e dar ainda uns dedos de conversa, agora todos a segurar o balcão. Combinavam-se até engates para a noite, depois “dos copos e das boites”. Mas é moda que está a mudar. Ao jantar a frequência é rara, e depois de jantar há grupos muitos característicos de antigos frequentadores que se reúnem para uma conversa-recordação-de-outros-tempos, com uns charros à mistura, coisa pequena, que deixam o seu perfume pelas redondezas. Quando o café fecha, perto das onze da noite, é hora de dormir para uns, de caminhar para as discotecas, para outros, de passear o cão, para a loura quarentona que mora por detrás do café, e de um ou outro casal dar livre curso à sua discreta paixão.
Um café
é casa de hábitos. Todos aqui vêm recuperar algo que não querem perder. A felicidade de um encontro que não volta mais, a emoção de um amor, a intensidade de uma paixão, a fogosidade da juventude, o tempo em que se era ou o tempo em que se há-de ser, o primeiro cigarro, o primeiro namoro, a primeira foda num carro, as sessões de estudo para as aulas e os exames, os poemas da juventudes e as crónicas da maturidade, a primeira piela de caixão à cova, as primeiras conversas de reviralho, as trocas de impressões sobre livros e filmes, logo no calor do depois de ler ou ver, os amigos, sim os amigos, os que ainda aparecem, os que já desaparecem, a saudade, a sensação de afirmação, ainda cá estou, ainda sobrevivo, sou eu, hei!, estou aqui no café…
Hábitos: cada um procura o “seu” lugar que conquistou pela antiguidade. Cada um já sabe ao que vem, o empregado nem espera para tirar a bica, ir buscar os jornais reservados, pedir o bacalhau do dia ou o arroz de pato. “Cá está, Senhor Fonseca, o seu bacalhauzinho!” E quando um estranho, um “bárbaro” se aproxima, logo se defende o terreno: “Essa mesa não pode ser, está reservada para a D.ª Dulce!”. É assim o café. “Reservado o direito de admissão”.
LA