Sentei-me na mesa do fundo, como de costume, mas desta feita trazia um livro de casa, que coloquei em cima do saco de plástico onde me tinham agrupado os jornais de sábado, que são sempre muitos (“Diário de Noticias”, “Público”, “24 horas”, em revista, “Correio da Manhã”, agora com os suplementos, o “Sol” e o “Expresso”). Trouxeram-me ainda o “Record” e a “A Bola”, da casa, por onde gosto de dar sempre uma vista de olhos (tempos houve em que comprava diariamente também um destes “desportivos”, agora é só de vez em quando). Enquanto esperava o “panado no pão” e o café, abri o “Conto de Natal”, de Dickens, que comecei a folhear procurando encontrar um trecho que gostava de citar, e eis que me cai para o chão uma folha de jornal, dobrada em quatro, do “Comércio do Porto”, onde em tempos, num Dezembro, escrevera uma crónica que agora me ressuscitava ali, de salto, como que por encanto. Chamava-se “Natal em Alcochete” e, logo a seguir, vinha a dedicatória: “para o Frederico, que não estava lá”.
E li:
Faz agora anos, mais dia, menos dia, mas de certeza por esta altura do Natal, fui à Moita animar um colóquio sobre Cinema e Comunicação Social, durante o qual se exibia o eterno “Citizen Kane”. Lembro-me de uma bela biblioteca municipal, com boas instalações e muito leitores jovens desfolhando jornais e livros. Era uma tarde de sábado, fria mas não chuvosa, e à saída, caia já a noite, passeamos pela localidade, eu, a Eduarda e a nossa amiga Sofia, porque o meu filho Frederico, que também não costuma perder estes "acontecimentos", estava longe, no Funchal, a ultimar a estreia de "Amália". Tomámos um chá numa aprazível casa do dito, no largo central da localidade, deambulámos pelas ruas, espreitei um velho cinema numa esquina da avenida principal. A noite continuava a cair sobre este Ribatejo afinal situado no "além-tejo", e metemo-nos no carro para regressar a casa.
Pelo caminho, em direcção à ponte Vasco da Gama, apareceu a indicação do desvio para Alcochete. Alguém lembrou a excelência de alguns restaurantes, e como era hora de jantar, resolvemos prolongar o passeio, desviar para a terra do "colete encarnado" e aproveitar por mais algum tempo o preguiçar daquela noite de doce inverno.
Entrámos em Alcochete por uma estrada que bordeja o rio, donde se avistam Lisboa e Almada, feéricamente iluminadas, por milhares de pontos luminosos que o reflexo nas águas do rio multiplica por milhões. O Tejo estava plúmbeo, ameaçador e sombrio, bem no centro do seu caudal, que por aquelas zonas é majestoso (lembrando-me sempre o drama de “Tarde Demais”, o filme de José Nascimento) mas, junto às margens, e por baixo da ponte, a luminosidade faiscava e coloria de fascínio aquele momento.
À procura de local para estacionar o carro, fomos parar ao largo de S. João, com a Câmara a dominar o espaço, a bandeira do Sporting hasteada no núcleo de adeptos da região, uma loja "Super Útil" aberta a desoras, deixando escorregar para o exterior do passeio a oferta de várias decorações de Natal que iam soltando o desejo nos olhos de alguns miúdos que aí paravam. Sem o saber, estava a começar o meu "Natal em Alcochete".
Não sou um entusiasta de toureio, ainda que admire a beleza do violento bailado que opõe homem e animal no centro do redondel; ser forcado nunca foi um sonho de criança, nem de adulto (apesar da coragem do acto gratuito de pegar um touro de caras seja invejável); nunca fui um frequentador assíduo das Festas do Colete Encarnado (muito embora as festas populares portuguesas, de norte a sul do País, me fascinem). Nada me faria apaixonar por Alcochete, mas de repente, Alcochete, as suas ruas estreitas, os seus largos elegantes, a pequena igreja a encimar o jardim, e as luzes natalícias a iluminar a noite criaram uma imagem que dificilmente esqueço.
Aquela terra que nas tardes de verão escalda e lança no ar a poeira levantada pelos touros em largada, aparecia agora como uma miniatura de cidade de Natal com as suas casas iluminadas por dentro e por fora, grinaldas de lâmpadas suspensas no ar, as janelas e portas festivamente engalanadas e abertas para o exterior. Subitamente, a delicada elegância do todo dominava. Por vezes, o toque aristocrático ou simplesmente abastado das casas apalaçadas impera, mas o que predomina é mesmo o ingénuo sentir popular. Imaginei as mãos calejadas de um duro dia a dia a afagar as grinaldas de verdura, a dispor as figurinhas do presépio, a colocar os fios de luzes nas árvores de Natal, a dispor as bolas prateadas e douradas, a colar nos vidros das monstras das lojas o algodão em rama das "Boas Festas e Feliz Natal".
Há quem fale da hipocrisia do Natal, da mentira de alguns gestos com que se mascara a violência diária, do consumismo que se apossa das pessoas, da falta de sentido de uma festa que não se devia circunscrever apenas a uma época do ano mas ser uma constante. È evidente que muito melhor seria ter este espírito de fraternidade e solidariedade ao longo de todo o ano, mas também é verdade que a vida é feita de altos e baixos, de dor e alegria, e que é da sua mutação que se faz a experiência. Sem dor não se saberia dar valor à alegria. Era bem escusado viverem-se alguns estádios de dor extrema, provocados pelos próprios homens, conscientemente, mas são momentos com estes, que o espírito do Natal instila, que tornam por vezes suportáveis muitas agruras anteriormente vividas. Por isso não será nunca demais exaltar estes momentos de pacificação dos corações, sentidos por crentes e não crentes, que todavia se deixam tocar por essa ilusão de magia.
Por esse Portugal fora, de norte a sul, há agora milhares de Alcochetes esperando o olhar emotivo e a surpresa da descoberta de um som, de uma luz, de um sentimento de maior humanidade (e de algum milagre, mesmo que este seja um milagre puramente humano!). O meu Alcochete de há uns anos, é, eu sei-o, apenas um símbolo. Ali se reuniram as condições para a cidade me surgir aos meus olhos numa leitura muito pessoal de felicidade possível. Foram as presenças e as ausências sentidas, foi a luz e a música no ar, foi o traçado das ruas, foi a harmonia das cores, foi o encantamento de um segundo de felicidade possível. Foi o espírito do Natal a evocar as saudades do filho distante, o pai perdido há muito, a certeza daqueles que nos rodeiam. O ano passado, foi em Alcochete, podia ter sido no Porto, a passar por tantas obras, mas sempre sedutor, perante um presépio humano numa aldeia da Madeira, nas ruas apinhadas de gente de Londres ou de Nova Iorque, numa aldeia perdida na serra da Estrela, na praça central de Viana do Castelo, no aconchego da casa em Lisboa. Podia, pode e deve ser em qualquer local. O pretexto é um menino nas palhinhas, uma árvore de Natal, o musgo arrancado a terra, um simples fio dourado e uma fileira de luzes colocados na montra de um talho ou numa "loja de 300". É um pretexto que vale a pena para uma viagem sem destino pelas ruas de uma cidade ou pelo interior de nós próprios, em busca de uma razão para viver.
P.S. Há dias voltei a Alcochete. Continuava Natal. A ameaça de desilusão que me acompanhou na viagem de ida, dissipou-se à volta. O que quer dizer que cada um de nós tem um Alcochete muito perto de si. Basta descobri-lo e atravessar a ponte. Uma ponte que nos leva até ao mais íntimo de nós e dos outros. Uma ponte que nos faz regressar à infância e nos projecta no futuro. Nos outros. (22.12.2000)
A leitura recordou-me tantas coisas, tantos Natais, tanta alegria, tanta tristeza, tanta vida vivida com os altos e baixos de quem só sabe viver com paixão. Mantendo-me nesta história, tenho de acrescentar algo mais. Uma espécie de PS, agora de 2006: Depois desta viagem, muitas outras vezes voltei a Alcochete e, uma delas, precisamente para passar o Natal, em família, com o Frederico que, entretanto, se perdera de amores por uma bela actriz-cantora-fadista que conhecera nos ensaios de “Amália”, e que fora com ela viver, imaginem!, para uma casa de Alcochete. Como as coisas são, e as voltas que a vida dá (podia continuar com os provérbios populares indefinidamente!). Por Alcochete tenho passado e continuarei a passar, se a tanto me derem tempo e saúde. Gosto da luz destes dias, gosto daquela mistura de cidadezinha de conto de fadas (e de “academia” dos sonhos sonhos!), gosto do frio de Dezembro junto ao rio, gosto do Natal, continuo a gostar. Por isso aquele Alcochete se mantém na minha memória, como tantas outras referências natalícias, que tanto me apetece recordar nesta altura, e de que tanto gostaria de ter engenho e arte para escrever/descrever. Fica o que a sorte e o talento permitirem. Por agora.
(Bom Natal, Isabel, colega de poiso, Bom Natal leitores/as de boa vontade.)
As fotos não são de Alcochete, no Natal, porque não levei a máquina nesse dia.
Mas são do Tejo visto de Alcochete, num fim de tarde de Verão.
19 comentários:
encontramos nos espaços meio escondidos, passados permeáveis de encontros e desencontros. é assim. também em Alcochete num fim de tarde, uma vez, numa noite, outra vez, descobri sentidos que andavam perdidos, arredados de mim. É mágico o lugar.
Obrigada Lauro, por me fazeres relembrar essa magia!
Também a noite de 21 foi fantástica e tu és um excelente bandido !!!!
Obrigada.
Beijo.
B.
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bom Natal....Lauríssimo...
(tenho imensa dificuldade em entrAR neste blog...não sei o que se passa...)
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aa "pontes" estão excelente. como a tua memória descritiva...
______________e Alcochete já não é o que foi...:))))
fica a memória que essa é o que queremos.
beijos...a recordar.
tem o meu natal. possível.
(tem o meu natal?....é o que dá escrever com medo de ser "corrida"....raios e coriscos...
olha hoje até entrei à primeira...é mesmo Natal...:)))))))))
então boa tarde...
alcochete? que coisa???!!!!!!!!
não vou. é "podre"de longe...:)-
prontos...
vou.me.
bjis.
Bons ventos daí vieram, um dia. Agora, a esperança de ventos de mudança.
por vezess mmórias ciem como chuva mansa e pacificadora.
BOAS ENTRADAS e um óptimo 2007.
bj
Aqui deixo os meus votos de um Novo Ano cheio de momentos maravilhosos!!!!
Estive por lá há pouco tempo com um grupo de amigos. Vimos as fotos ao vivo e jantámos um saboroso peixe.
Marquei voltar um dia e agora este post trouxe-me a memória de volta.
Bom post, boas recordações.
…coisas que valem a pena, para além do panado.
Mais uma vez, porque nunca são demais, BOM ANO!
Beijinhos
taran!!!!!!!!!!!!!!!!!cá tou eu....
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lá lá lá....
au ro
beijos...
semeados entre os cinquenta mil livros...
(ah e tb à Ed. e ao Fred...)
PIM!
Um admirável ANO NOVO para si Lauro António e para toda a " bandidagem " que por aqui passa ! Com tanta inspiração até apetece entrar já em 2007 ... O Novo Ano Promete !
SORRISOS * ABRAÇOS * BRILHOS *
onde andas tu que não escreves aqui as tuas belíssimas palavras?!... Vá-Vá-diando, tá visto...
Excelentes dias novos...
pour toi et Ed. et Fred.
...
Beijos
B.
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Blah blah...: um beijo da A rasar o céu. E votos de bom 2007?
E já agora um Feliz e Próspero 2007
(007?) meu para todos os amigos e amigas. E que cá continuemos a vavadiar. (escreve aqui, perguiçosa!).
tens toda a razão....preguiçosa....mas se soubesses da minha vida inda escrevias por mim...em meu nome...:)))))
______________pronto....prometo. reaparecer...
bjis....
Não sabia que eras o Lauro António !!!!
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Frioleiras: Agora já sabes. E que tal? Eu não sei quem és, mas já fui espreitar tuas as gravuras e as fotos. E mando um beijo
mas... ainda estão em Alcochete???!!!!.... tanto tempo, caramba!!! Lisboa é já aqui...
beijinhos...
B.
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Caro L A;
Venho da Y, pianissíma rasante dos céus e minha AMIGA!
Não sabe como gostei deste seu post/conto...
Alcochete faz parte do meu imaginário infantil, dos passeios com os meus pais em tempo de 'Colete Encarnado' e das largadas. Faz parte duma vivência mais recente... da 'Neblina' que deixei no 'Alcaxete'.
'Lisboa vi-te de longe, do outro lado do Tejo'!
Tenha um Feliz 2007!
terras que não conheço. sentimentos que já visitei.
abs.
Isto ia tão bem!
Pararam porquê?
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