quinta-feira, novembro 23, 2006
3. UMA CIGARRILHA PERDIDA
- Posso? Não te importas?
- Claro que não… Podes fumar à vontade….
- Tu não fumas?
- Deixei de fumar há três anos. Faz precisamente agora três anos, vinha da Serra da Estrela, trazia uma carga de sinusite no pelo, nessas alturas nunca tinha vontade de fumar, ou melhor era algo estranho, o tabaco não me sabia bem, muito pelo contrário, mas eu não deixava de fumar… De qualquer forma, dessa vez deixei mesmo de fumar. Julguei que ia estar uma semana, quinze dias sem fumar…. Mas nunca mais me apeteceu. Andei durante quase quatro meses com um maço de cigarrilhas e o isqueiro no bolso do casaco, pronto a fumar se me apetecesse, mas nunca mais me apeteceu…. Deixei de fumar, pois…
- Não acredito! Assim, sem mais, nem menos?… Conta-me como fizeste, conta-me tudo… Gostava tanto de deixar de fumar… Preciso de deixar de fumar, mas não consigo.
(Puxa um cigarro do maço que coloca sobre a mesa de café, e acende-o com o isqueiro, tira uma fumaça lenta, deixa enrolar o fumo pelo ar, olha em redor, não há ninguém nas mesas mais próximas e sente-se mais reconfortada).
- Olha, por mim, não quero nada com os fundamentalistas anti-tabagistas, só por causa deles nem me apetecia deixar de fumar, mas também acredito que o corpo nos indica o que devemos fazer. Não tenho dúvidas de que temos que “ouvir” o que o organismo nos diz. Eu sinto que o corpo me diz o que devo comer, o que devo fazer, ou não fazer. É só “ouvir” o organismo e agir de acordo com... Olha, de repente, passou a apetecer-me imenso legumes e vegetais, deixo de fumar, por vezes levanto-me, quando estou muito tempo sentado frente ao computador, e vou dar uma volta, andar, andar, avenida de Roma abaixo, até às livrarias, para as pernas desentropecerem… Espero que nao tenha começado a “ouvir” o corpo tarde demais....
- Eu não “ouço” o meu corpo nesse caso, diz ela, e sorri, um sorriso bonito, iluminado. Os olhos de Isabel são vivos e extraordinariamente expressivos. É bom ter à nossa frente alguém que se sente bem consigo própria, que se deslumbra com uma fumaça, que saboreia um café, que pede uma água “com picos”, como se fosse uma guloseima, que fala do filho com o carinho e o orgulho de uma mãe babada (“Tu, ao que me lembro, também és um pai galinha!” e voltava a sorrir, e eu que sim, “cada vez mais pai galinha!”). Vinte anos depois, ela ali está, e sinto a mesma amizade reciproca como se o tempo nao tivesse passado, eu e ela tivessemos estado juntos uns dias antes.
- Sabes, Isabel, o que eu gostava era de poder fumar uma cigarrilha, ou um charuto (há muito que tinha deixado os cigarros, o papel do envólucro não o tolerava já), quando me apetecesse, sem ser compulsivo, viciante. Mas eu sou um homem de vícios, de obsessões, quando caio numa dificilmente me liberto sem ir até ao fundo, mas quando me sinto bem no fundo, olho-me (“ouço o corpo!”, sim “ouço o corpo!”), e de um dia para o outro dou a volta, ponho ponto final na obsessão e viro-me para outro lado.
É pena o cigarro não poder ser apenas um prazer que se desfruta quando apetece. Comigo não era. Era algo que me agarrava por completo, que me criava uma servidão sem sentido, algo de compulsivo, de irracional. Chegava a ter duas cigarrilhas acesas em simultâneo: esquecia-me que tinha acendido a primeira, acendia a segunda, uma no cinzeiro, outra na boca, a rolar entre os lábios, enquanto escrevia, enquanto lia, enquanto passeava.
Mas as saudades ficam! Aí se ficam, mesmo quando já não nos apetecem os prazeres. As saudades que tenho de uma boa cigarrilha, ou um charuto! Tenho saudades, porém, do tempo em que elas me davam prazer. Agora já não dão. Não me dão prazer nenhum. Posso falar do caso da mulher que se ama, que não podemos passar sem ela, e que, de repente, por isto ou aquilo, falta nossa ou culpa dela, deixa de ser a mulher amada, e passa a ser uma desconhecida. A fúria, o ciúme, a obsessão deixam de existir. O prazer do fumo, deixa de ser o prazer do fumo… O prazer do amor também pode deixar de ser o prazer do amor.
Sabes que até já me tentei forçar? É verdade: fumar mesmo sem me apetecer, para ver se me voltava a apetecer. Ainda por cima tinha uma superstição, com o Sporting. Sabes que sou fanático?! (“Eu também sou do Sporting!”, diz ela e continua a sorrir). Costumava (e costumo) ver os jogos em casa, e normalmente a fumar charuto. Havia mesmo alturas em que, achando-se o Sporting em maus lençóis, e não estando eu a fumar o meu charuto da sorte, ia a correr buscar um, para ver se remediava a mala pata dos avançados. Mas até isso não resultou. Aqui há tempos, o Sporting estava a perder, jogo grande, a merecer sacrifício, e fui rapidamente buscar um charuto a uma das muitas caixas que ainda tenho lá por casa. Não queres ver que não me soube a nada? Ou pior: soube-me mal, e o Sporting não deu a volta. Por isso, olha, acabou-se a dependência, o fumador compulsivo. Ando bem, nem engordei por isso. Nada de especial aconteceu. Talvez um pouco de mau humor, ou de irritabilidade, mas nunca sei se sou eu, se são os outros, alguns outros. Ou outras. Ainda não me irritei contigo, Isabel. Ri. Quando não há razões para nos irritarmos, nem a ausência de tabaco lança a discórdia.
Mas houve outras causas, sim, devem ter existido outras causas, se calhar bem mais profundas para eu ter deixado de fumar. Vi morrer, com meses de intervalo, dois grandes amigos, o MCS e o CC, fumadores compulsivos, que arrastavam aquela cavernosa tose de fumador que não é nada elegante e deixa marcas no próprio e nos que o rodeiam. Eu via-os tossir e fumar, fumar e tossir, e, em dias separados, fui acompanhar cada um deles ao cemitério. Não voltaram. Perdi-os, eram como irmãos. Tempos depois comecei eu a tossir, e aí parei. Há que ter alguma força de vontade mas, no meu caso, nem disso me posso orgulhar. Não fiz nada por isso, a não ser que tenha acontecido algum processo interior, que me passou desapercebido. Tudo é possível.
- Tenho de deixar de fumar. Às vezes também tenho esses ataques de tose, que não são nada bonitos de ver, ou ouvir…
- Olha, faz o que o corpo te pedir. Uma amiga (amiga?), há dias foi ao médico, tosse, muito fumo, e ele mandou-a parar de fumar. O processo é sempre o mesmo. Tentar parar, ou fumar muito menos…Mas, olha!, detesto moralistas desses que apregoam a virtude a todo o preço. Os vícios curtem-se, se nos sabem bem. As obsessões, até as amorosas, só se renegam, ou se esquecem, quando já não sabem a nada.
No café, ouvia-se como música de fundo “Gotan Project, Lunático.” Entre “Amor Porteño” e “Celos”, entre “Mi Confessión” e “Lunático”, entre a bica e o livro de poesia que ela trouxe e eu folheio, uma tarde a chegar ao fim. Lá fora a chuva cai. É inverno. Ou quase. Anoitece. “Buenos Aires”… Um tango dorido… quente ... que fala de insatisfação, de amores perdidos, de ciúmes, pensamentos do coração, são a minha confissão… A voz rouca e o ruido de fundo de café, de bar, de tasca.
Pagámos e saímos. Cada um para seu lado da noite que caía. Com a compassada toada do tango… E o fumo da cigarrilha a inundar o horizonte de Buenos Aires, de Lisboa.
LA
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
12 comentários:
dual não dual
o ser universal
espero que o comentário anterior passe pela moderadora. Este é melhor não passar!
não é moderadorA....:)))))
ANTES moderador.....
e não-fumador....o LA.
__________
"No café, ouvia-se como música de fundo “Gotan Project, Lunático.” Entre “Amor Porteño” e “Celos”, entre “Mi Confessión” e “Lunático”, entre a bica e o livro de poesia que ela trouxe e eu folheio, uma tarde a chegar ao fim. Lá fora a chuva cai. É inverno. Ou quase. Anoitece. “Buenos Aires”… Um tango dorido… quente ... que fala de insatisfação, de amores perdidos, de ciúmes, pensamentos do coração, são a minha confissão… A voz rouca e o ruido de fundo de café, de bar, de tasca.
Pagámos e saímos. Cada um para seu lado da noite que caía. Com a compassada toada do tango… E o fumo da cigarrilha a inundar o horizonte de Buenos Aires, de Lisboa."
não imaginas a nostalgia...
adorei o texto.
abraço!
_____________________
hum.....o Lee....o "aforista"....
___________________
:))))
amei ler....
jocas maradas
«É pena o cigarro não poder ser apenas um prazer que se desfruta quando apetece. Comigo não era. Era algo que me agarrava por completo, que me criava uma servidão sem sentido, algo de compulsivo, de irracional. Chegava a ter duas cigarrilhas acesas em simultâneo: esquecia-me que tinha acendido a primeira, acendia a segunda, uma no cinzeiro, outra na boca, a rolar entre os lábios, enquanto escrevia, enquanto lia, enquanto passeava.
Mas as saudades ficam! Aí se ficam, mesmo quando já não nos apetecem os prazeres. As saudades que tenho de uma boa cigarrilha, ou um charuto! Tenho saudades, porém, do tempo em que elas me davam prazer. Agora já não dão. Não me dão prazer nenhum. Posso falar do caso da mulher que se ama, que não podemos passar sem ela, e que, de repente, por isto ou aquilo, falta nossa ou culpa dela, deixa de ser a mulher amada, e passa a ser uma desconhecida. A fúria, o ciúme, a obsessão deixam de existir. O prazer do fumo, deixa de ser o prazer do fumo… O prazer do amor também pode deixar de ser o prazer do amor».
É que só consigo mesmo sorrir a ler isto. Mas de onde é que reconhecerei eu este tipo de discurso que me soa tanto a "dejá vu" [no bom sentido]? :))))
hum....
hum.......
não sei que te diga....
vou pensar....para Buenos Aires!
:))))
Ai, quem me dera este post seja capaz de me fazer desistir de ter Mario Quintana como salvação:"...desconfia dos que não fumam, estes não têm sentimentos. Fumar é uma maneira disfarçada de suspirar...", pois que eu, fumante compulsiva, senti agora tanta, mas tanta vontade de sair por aí sem levar o maço de cigarros, graças a ti! Abraço.
Muito bom o que acabei de ler.
Felicito-o
alôoooooo nem pensar em ler isto tudo... mas reparei na chavena vává!!!
Mas as saudades ficam! Aí se ficam, mesmo quando já não nos apetecem os prazeres. E eu que pensava que só a mim aconteciam esses rompantes... Delícia de texto. Não por ser fulgurante, mas por ser lento, morno, distante do tempo que passa, ainda que oprimido por ele, como uma tarde ociosa.
Enviar um comentário