domingo, dezembro 17, 2006

8. UM SMS DE MEMÓRIAS


Ontem, de um amigo de há longos anos, recebi um sms. O telemóvel tocou, voltava eu do Porto, num Alfa. Estava a chegar a Lisboa, já tinha rede. “Tem uma nova mensagem”, li. Abri: “Lauro, de repente remetem-me para um blog que desconhecia e para um doce vavadiar. Texto de extrema saudade, convite nostálgico, viagem de olhares e memórias que muito me emocionaram. Em breve aterrarei por aí para matarmos saudades. Até breve. Abraço amigo. Mário.”
O Mário é um amigo de há muito. Um daqueles amigos que às vezes estamos anos sem ver, sem nos falarmos mesmo, mas que sabemos, lá e cá, que onde quer que estejamos, somos amigos. A amizade cultiva-se, é bem verdade. Mas há amizades que pegam de estaca, que não morrem senão como as árvores, aquelas que “morrem de pé”.
O Mário conheci-o no Vává. É amizade nascida num café. Eu escrevia sobre cinema há muitos anos, fazia já um ou outro filme, ele acabara de se formar em direito, gostava de cinema. O cinema aproximou-nos. Fizemos revistas de cinema em conjunto (o “Isto é Espectáculo” e o “Isto é Cinema”), e depois foi meu assistente de realização na “Manhã Submersa”, imaginem lá, no ano de 1979, Inverno bem Inverno, a chuva, o vento, a neve em plena Serra da Estrela bravia, o quartel general em Seia, as filmagens em Sintra, em Seteais, em Lisboa, ali para os lados de Xabregas. Os miúdos e a gritaria, anos ainda quentes de pós revolução, as dificuldades que brotavam dia a dia, a falta de dinheiro de um orçamento de fome que muitas vezes me era ocultado, precisamente pelos assistentes e pela produção para eu não perceber as aflições, o saudoso (saudoso é pouco!) Vergílio Ferreira como actor, os actores, tantos e todos admiráveis, a Adelaide João, um exemplo entre dezenas de outros, a filmar com as mãos enfiadas num riacho, junto ao castelo de Linhares, e a chorar com o frio da água gelada a gretar-lhe a pele, sem nada me dizer, para não atrapalhar as filmagens que tinham de ser rápidas, a Eunice a surgir uma noite num dos corredores da estalagem de Seia, preparada para as filmagens do dia seguinte, transfigurada em Dona Genevova, qual fantasma retirado da minha imaginação, personagem de um sonho que súbito toma forma e voz, a estreante Maria de Lurdes Martins e a veterana Maria Olguim, duas criadas que marcavam o filme com o desejo que se anuncia e a figura da mãe distante, o filme a fazer-se e outros projectos a iluminarem-me já a vontade de prosseguir, uma adaptação de um peça de teatro do meu querido Miguel Franco, “O Motim”, e a procura de locais de filmagens, de cenários, uma visita a uma capela ali para os lados da calçada de Carriche, eu e a Eduarda, que fotografava, o Mário e a Ana, essa mesma Ana que depois se tornaria actriz célebre, sentados à sombra das árvores, trabalhando com sugestões e namoriscando, as “reperages” para uma biografia de Florbela Espanca que nunca acabei por realizar, mas que nos levou a Vila Viçosa e a Leixões, mais os projectos que se recordam como “projectos” do que os que se conseguiram concretizar, contabilidade mortiça de uma terra de desilusão e frustração, este doce e amargo Portugal, onde os amigos são certos, mas as invejas e as traições não são menos seguras.


E tudo começou, começava, começará numa mesa de café, perante um café ou um almoço no “Vává Pobre”, como em jeito de paródia se definia o lado direito do café-restaurante, que reserva o seu “cotê gauche”, o “Vává Rico”, para almoços e jantares de “uma outra substancia”, ou porque as circunstância o impõem ou porque os comensais o exigem. A formalidade do “Vává Rico” quase sempre me afastou da sala onde impera um óleo da Manuela Pinheiro, para me instalar no bulício da área onde o que predomina são dois painéis de azulejos da Menéz.
O Mário, depois de longos anos convívio cinéfilo, seguiu por outro caminho, a diplomacia, viajou oficialmente pelo Egipto e o Luxemburgo, a Bélgica e França (em Paris, cruzámo-nos, já todos casadíssimos e com filhos), agora anda por Lisboa há uns anos, e, vá-se lá perceber a vida, ele lê-me agora em blogues e eu sei dele e da família por amigos comuns, como o Fanan. Lá de tempos a tempos um telefonema, e o adiar de um jantar para por a conversa em dia. Mas a amizade é isto, um café como porto de abrigo, nem que seja abrigo de memória, de memórias. As amizades fazem-se também de memórias e de promessas: um dia vamos jantar, ou almoçar, ou tomar um café. Conhecemo-nos meninos e moços (ele mais menino e moço que eu), agora já temos mortos amigos a demarcar a estrada, tantos já, ao lado de tanto momento bom para festejar, e não desistimos, ainda há muitos cafés para tomar, numa mesa de um qualquer lugar por esse mundo fora.

Isabel, este foi um sms de memórias. Muito pessoais. E de promessas. As memórias nunca se apagam. À mesa de um café recordam-se muitas. À mesa de um café imaginam-se e constroem-se tantas outras. Um dia destes, nesse mesmo café, procuraremos cimentar antigas amizades e inventar novas, novos projectos, novas paixões, novos desejos. Enquanto se bebe um café e se trinca a vida. Até que ela nos trinque, vamos petiscando.

LA

5 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

sms para trincar. pela vida fora.


excelente Lauro.


bom dia. bom domingo.


:::::::::::

até.


beijo.

Lauro António disse...

obrigado, Isabel.
Até. Tu sabes.
Um beijo.
LA

Bandida disse...

trinquemos... lá...



gostei muito.




B.
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Lauro António disse...

Ai, Bandida, Bandida!, não brinques ao trincar... Obrigado e um beijo (sem trincadelas!). LA

Choninha disse...

As memórias não cabem num SMS, quanto muito em 323 ou 324 acanhados, condensados, SMS. São "poucochinhos" de nós, que vão ocupando muito. Às vezes, até demasiado, deixando-nos sem espaço para criar novas memórias.

Mando um abraço para a I. e para o L.A., forte.