sábado, abril 28, 2007

Geração Vávà no Epresso - 24.04.2004



A geração Vavá

Evocação de um café de Lisboa que foi símbolo dos anos 60. Ali nasceu o cinema novo português, ali se conspirou e se sonhou o futuro em dissidência com o país cinzento. Memórias da inquietação
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No cruzamento da Avenida de Roma com a dos Estados Unidos da América, onde se erguem quatro edifícios a vermelho e branco, foi projectado de raiz um café com a assinatura do arquitecto e «designer» Eduardo Anahory. Este lugar, moderno e arejado, com uma esplanada virada para as novas avenidas de Lisboa que simbolizavam a modernidade e o cosmopolitismo de uma emergente burguesia citadina, marcou a geografia urbana de uma geração.

Inaugurado em 1958, com nome inspirado num famoso jogador brasileiro de futebol, o Vavá foi no correr da década de 60 poiso de uma juventude atenta aos ventos de mudança e que desacertava o passo com o país da marcha vagarosa sob a égide da cultura salazarista. Foi o espaço carismático de líderes de crises académicas e dos cineastas inquietos que despertavam para o cinema novo. O café dos músicos que ensaiavam os toques da agitação «ié-ié» e dos publicitários que andavam na forja da profissão do futuro. O abrigo dos políticos que sonhavam em voz alta com a sociedade aberta e das musas e valquírias - assim eram chamadas as meninas do Vavá, consideradas mais desempoeiradas do que era usual. Eram os tempos dos verdes anos.

Relembrando os velhos tempos no Vavá: atrás, Fernando Lopes, Maria Helena Brederode, José Paulo Gascão e Medeiros Ferreira; à frente, Ana Louro, Helena Carneiro e António Dias

Conta Paulo Rocha: «Eu tinha chegado do Porto e os meus pais compraram um apartamento no oitavo andar do prédio do Vavá. Era a época da monomania do cinema. Eu andava à procura de um argumento para fazer o meu primeiro filme e li num jornal a notícia de um crime passional. O caso tinha acontecido ali ao lado e impressionou-me muito. Andei às voltas pelo bairro e descobri uma oficina de sapateiro que tinha uma janela linda, em cinemascope, aberta sobre a rua. Acabei por filmar naquele eixo entre a Estados Unidos da América, onde ficava a minha casa, e o café Vavá».

Assim começava a rodagem de Verdes Anos, o filme de culto que em 1963 inaugurava uma nova vaga no cinema português. As filmagens foram um acontecimento. Durante quatro meses, assistia-se na rua, em directo, ao processo de fazer cinema. No centro da cena estava o Vavá. Todos os dias o grupo dos amantes da sétima arte, entre eles os jovens cineastas Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos e Lauro António e o crítico Seixas Santos, acompanhava o movimento da câmara de Paulo Rocha e discutia apaixonadamente o desenrolar da acção.

CARLOS PAREDES E A JAPONESA

Obras em toalhas do café: de Carlos Mendes...

Para Paulo Rocha, figura discreta e tímida, que descia de casa para se cruzar brevemente com o pessoal que se reunia no café à sua porta, esses foram momentos quase mágicos. Qualquer coisa muito importante começava a acontecer, agitava-se, e pairava no ar. «O Carlos Paredes, autor da banda sonora do filme, passava pelo café e subia ao oitavo andar para dar aulas de música à namorada japonesa com quem eu estava na altura. No prédio, as empregadas das senhoras seguiam atentamente as filmagens e protestavam junto dos jornalistas - que andavam por ali a ver - porque não concordavam com o guarda-roupa escolhido para a Isabel Ruth representar o papel da criadita que tinha chegado da província. Eu estava a trabalhar com uma equipa de amadores e tentava provar que era possível fazer cinema daquele modo. Foi puro artesanato».

Conta-se que no dia em que Verdes Anos estreou, o grupo do Vavá subiu à Sé de Lisboa e foi até junto da prisão do Aljube gritar aos presos políticos como tinha corrido a estreia. Cá fora recebiam-se ecos de que na cadeia a realização do filme tinha sido atentamente seguida pelos presos. Sobretudo pelos militantes comunistas, grandes apreciadores da música de Paredes. Paulo Rocha soube mais tarde que muitos deles, quando saíram da prisão, a primeira coisa que fizeram foi ir ver o filme. Este facto impressionou muito o cineasta. A sua primeira obra passara a representar os ventos de mudança e, nesse sentido, era um marco da resistência cultural.

José Medeiros Ferreira, hoje deputado socialista na Assembleia da Republica, confessa que ainda sente uma certa nostalgia daquela tertúlia. Começou por frequentá-la quando andava na Faculdade de Letras, por altura da crise académica de 1962. No seu grupo participavam Jaime Gama e Alfredo Barroso. Para os estudantes, que subiam a pé desde a Cidade Universitária até à Estados Unidos da América, o Vavá simbolizava a modernidade lisboeta. Um ponto de encontro fora dos corredores de Direito e de Letras que, segundo o jovem estudante açoriano de então, representava uma janela para o mundo lisboeta.

... Dalila D’Alte...

«Era o melhor mundo possível no Portugal daquela época», conta Medeiros Ferreira. «Havia um convívio de gente de grande qualidade. Um dos grupos que andava por ali era o dos publicitários, que começa, justamente nos anos 60, a surgir em pequenas agências com pessoas muito criativas. Muitos dos estudantes expulsos das universidades nas crises académicas foram caçados para a publicidade, pois tinham um espírito crítico, irreverente e inovador que era muito adequado àquela profissão. Mas eram os cineastas quem dominava a tertúlia do café. Havia até uma certa rivalidade entre eles e os associativos por causa do elemento feminino».

Numa época em que os namoros ainda se faziam muito nas salas de cinema e os movimentos das raparigas eram controlados, na melhor das hipóteses, pelos irmãos mais velhos, o contingente feminino que frequentava o Vavá - a quem João César Monteiro concedeu o título de «valquírias» - marcava diferença. Eram consideradas o princípio da modernidade feminina e, de alguma forma, representavam o «l’air du temps» que ali se vivia.
Ana Louro, decoradora e aderecista de cinema, começou a frequentar a tertúlia com 16 anos. Tinha chegado de Paris, onde, durante sete meses, andara a flanar sozinha. Um feito raro numa jovem portuguesa do início dos 60 e que lhe proporcionava uma aura de emancipação e de grande liberdade, muito apreciada pelos jovens do Vavá.

O «SWING» DOS SHEIKS

... de Manuela Pinheiro

«Todos nós morávamos por ali e passávamos lá os dias», recorda Ana. «Aparecia sempre imensa gente e os grupos iam-se formando à volta das mesas, com todos a fumar ao mesmo tempo. Naquela época o Vavá era um café lindo, com os azulejos da Menez e uns sofás em cabedal que eram um luxo. Aquilo era uma referência absoluta em Lisboa. Muita coisa que se fez nasceu ali. Lembro-me do Luís Villas-Boas, que andava por lá a organizar o Festival de Jazz de Cascais e com quem íamos à noite para o Hot Clube».

No grupo dos músicos pontificavam os Sheiks, cujo mentor era Mário Assis Ferreira, actual administrador do Casino Estoril. Fernando Tordo e Paulo de Carvalho faziam parte da banda. Villas-Boas, que já tinha o seu programa de rádio e possuía uma invejável colecção de LP, levava muito a peito a educação musical de Paulo de Carvalho, a quem emprestava discos para lhe espicaçar o «swing».

Mas o grande catedrático das tertúlias do Vavá era o cineasta Fernando Lopes, cujos conhecimentos adquiridos nas mesas de montagem da RTP, onde trabalhava, lhe garantiam um estatuto técnico que ninguém mais tinha. O contrato para o seu Belarmino, realizado em 1963, foi redigido por António da Cunha Teles, que tinha a sua produtora ali em frente, e assinado num guardanapo de papel.


Lauro António com Fernando Lopes e Maria Emília Brederode, na esplanada

O café era o elo que fazia a ponte entre o grupo dos cineastas e os estudantes associativos, uma espécie de interface com ligações a vários núcleos de Lisboa e através do qual chegavam ao centro das Avenidas Novas as novidades e as conspirações que agitavam a cidade. José Paulo Gascão, outro grande «habitué», que tinha chegado do Fundão para estudar Direito, era um dos associativos que vinha fazer militância para as mesas do café, tentando recrutar alguns dos jovens para a causa comunista. Fernando Lopes, menos dado à militância política, lembra-se bem das operações-relâmpago e dos abaixo-assinados que surgiam no Vavá e incendiavam os meios culturais.

Para muitos dos estudantes que vinham da província - grande parte morava em quartos alugados por aquelas bandas -, o Vavá era uma espécie de grande casa onde permaneciam a partir das três da tarde. E a tarde começava com os jornais vespertinos, que chegavam por essa altura e eram lidos colectivamente. Por lá ficavam até à noite, longe do controlo das famílias.

Helena Carneiro, outra das musas do Vavá (que mais tarde foi directora de publicidade no EXPRESSO), tinha vindo do Porto para estudar Letras em Lisboa. Era ela uma das grandes impulsionadoras dos movimentos que se organizavam a partir do café: as idas colectivas ao Cineclube e às sessões dos cinemas Império e Monumental, e também às manifestações que começavam a aquecer aqueles anos; os passeios organizados fora de Lisboa e as festas num 13º andar ali em frente, na casa onde moravam António-Pedro Vasconcelos e António Dias (actual embaixador de Portugal em Belgrado) e onde César Monteiro, uma espécie de sem-abrigo que espreitava as casas de uns e outros, pernoitava com grande assiduidade.

CHICO BUARQUE E AS VALQUÍRIAS

Isabel Ruth e Carlos César numa cena de «Paisagem Sem Barcos»,
de Lauro António, rodada no café

Helena Carneiro ainda se recorda de uma peça de teatro que foram todos ver ao cinema Império, em 1966, e que marcou aquela geração: Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, representada por um grupo universitário brasileiro e que integrava no elenco três músicos para acompanharem as canções. Um deles fez grande furor entre as valquírias do Vavá. Era Chico Buarque de Holanda, autor da música da peça, então um ilustre desconhecido, que por cá andou durante um mês, segundo consta, em permanente bebedeira.

Para a ex-directora de publicidade, os dias do Vavá terminaram com o fim da década de 60. Entretanto tinha casado com Zé Manel Picão de Abreu, outra grande figura do Vavá e actual presidente da Federação de Rugby, e o casal sonhava conhecer África: «A certa altura convidaram-no para ir trabalhar para a Estúdio Norte, uma agência que estava a começar em Luanda. Acabámos por arranjar trabalho para os dois. Quando regressámos, em 1973, os tempos já eram outros».

No final dos anos 60, também Medeiros Ferreira e Maria Emília Brederode se despediam dos dias do Vavá. Fernando Lopes recorda-se de o amigo ter passado pelo café, na véspera de partir para o exílio, para lhe contar a novidade e dizer adeus. Foi em 1968. No ano em que começaram as provocações do movimento Jovem Portugal, os meninos salazaristas que faziam incursões até ao café e atiravam pedras aos vidros. No início dos 70, a geração do Vavá começou a mover-se para outras direcções. Tinham passado os verdes anos.

Texto de Ana Soromenho
Fotografias actuais de António Pedro Ferreira, in Revista de Expresso, de 24 de Abril de 2004.

7 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

brilhante!













olá Vadio!

abraço. grato pela ideia.

Bichodeconta disse...

Este como outros lugares de encantos , nestacidade que amamos, está infelismente como tudo neste país , votado a um abandono de dar dó... Há dia em que nos levantamos com vontade de andar, rumamos á á zina "velha " de Lisboa, subimos ao castelo, por ruelas e calçadas, de quando em vez o Tejo espreita-nos por pequenas nesgas estre o velho casario... Aqui e ali tiram-se fotos para mais tarde recordar, descemos á baixa, e no João do Grão ou mais ao lado petiscamos, Subimos novamente debaixo de um sol abrasador que faz ficar na pele um gostinho daqueles... Extraordinário o lugar e o texto, pena que mais pessoas não gostem de perservar e divulgar todos os nossos tesouros da cultura... Um abraço .... Voltarei aqui para beber destes daveres de encantos tantos....

o Reverso disse...

é sabe sempre bem recordar o passado, com saudade e por vezes até com alguma trisreza, mas sabe bem.

Nélia M. Pereira disse...

Caro(a)s Bloggers,


A NEGRA TINTA EDITORIAL tem o grato prazer de lançar a obra “CÂMARA ESCURA (revelação), do poeta Joaquim Amândio Santos, com prefácio de António Lobo Xavier.

Sendo esta obra mais um trabalho nascido de um escritor cuja carreira foi lançada na blogosfera, a exemplo das edições previstas e possíveis no futuro próximo desta editora, será importante contarmos com a honra da presença de bloggers nas diversas acções de lançamento da obra.

Nesse sentido, solicitávamos indicação de morada ou preferência por receber o convite por mail para negratinta@gmail.com, bem como qual dos eventos escolhem para nos honrar com a sua presença.

Lançamento e Apresentações:

31 de Maio Funchal
8 de Junho Penafiel
14 de Junho FNAC Norteshopping, Porto
28 de Junho FNAC Chiado, Lisboa
5 de Julho FNAC Coimbra


Aproveitámos ainda para solicitar que qualquer manuscrito que entendam colocar à consideração desta editora para possível publicação, seja enviado por este mail, ao meu cuidado, estando previsto editarmos até 4 obras, nascidas na blogosfera, até Março de 2008.

Saudações Literárias,

Nélia Maria Pereira
Edições e Comunicação
NEGRA TINTA EDITORIAL

isabel mendes ferreira disse...

ora bem...vinha eu "muito fresca" postar neste vadio vavadiando e







népias....zero.

não entro!



mas tá bem....mereço.


e quando assim é nem refilo.


deixo beijos.


if i may so.....


pim!

isabel mendes ferreira disse...

e mais....hoje tou mt faladora...:)))) se jÁ não entro....tira-me daqui!!!!!!
e esta?


tou amuada...pois estou....ora essa.


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não ligues....



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brinco.

Lauro António disse...

Minha querida Isabel: Não alterei nada, está tudo na mesma. Não percebo porque não entras, mas vou estudar o caso...

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bjs