quarta-feira, novembro 22, 2006

1. À VOLTA DE UM CAFÉ



Ela tinha escrito: “”Vá-Vá.diar” às 15 horas. “Para matar saudades.” Eu lera o mail, mais de uma vez, e não havia dúvidas possíveis, só podia querer dizer uma coisa: estar no café VáVá, pelas quinze horas dessa terça feira. Uma provocação. Há mais de quinze, ou vinte anos, que não nos víamos. Quiséramo-nos bem por essa altura. Nada que extravasasse a amizade. Ou que a não extravasasse na realidade dos factos, porque no intimo de cada um, só cada um poderia saber com que sonhara. Nessa altura ela era bonita, alta, loura, vistosa, deixava atrás de si um rasto de olhares. Recordo-me bem de tardes e tardes preguiçosamente estendidas naquelas mesas de café, conversas redondas e olhares cúmplices, livros, quadros, poemas, e mais olhares…
Ela sabia que o café continuava a ser o meu poiso regular, dos almoços ali tomados, das muitas bicas, dos jornais e dos livros folheados e lidos, dos encontros de todo o género que por ali marquei, namoradas desde a juventude, alunos para entregarem trabalhos fora de horas, jornalistas para entrevistas, técnicos e actores para assentarem marcações, ensaios abreviados, os amigos do king que se reuniam, alguns dos quais “já” desaparecidos, diversos simplesmente desaparecidos daqueles locais trocados por outros para onde as vidas os haviam levado.
O café!
O café, enquanto local, espaço, e não só chávena, e não só bebida, refere duas realidades, ambas de agradável evocação para mim: a bica, que se toma, e a tertúlia de amigos com quem se fala, enquanto se bebe a primeira.
Muitos escritores têm relembrado, em saborosos textos, tertúlias célebres ao longo das décadas. Não vem ao caso historiar, mas Lisboa esteve bem provida destes locais de referência obrigatória, e não há certamente quem ignore o papel do Martinho da Arcada, da Brasileira do Chiado, do Nicola, do Café Gelo, do Monte Carlo, do Ribadouro, de tantos e tantos outros. Escritores e pintores deixaram marca num local, actores e encenadores eram habituais noutros, os cinéfilos reuniam-se sobretudo no antigo VáVá, mesas pegadas com cançonetistas e baladistas dos idos de 60, e, antes do 25 de Abril, políticos e "gente do reviralho", como então eram chamados os opositores ao regime, apareciam um pouco por todo o lado, acumulando funções na maioria dos casos.
Os cafés eram locais de encontro, logo depois do almoço, e antes de se entrar no trabalho, ou a seguir ao jantar, prolongando-se então a cavaqueira pela noite dentro, até que as suas portas fechassem, e muitas vezes até para lá do seu encerramento. Nunca antes das duas ou três da matina. Muitos artigos se escreveram, muitos romances e poemas se pensaram, muitos espectáculos se montaram, muitos filmes se idealizaram, muitos quadros adquiriram ali cores e formas, muitos governos caíram e muitos outros se formaram à mesa de um café de Lisboa, do Porto, de qualquer cidade do interior de Portugal.
Não havia ainda televisão em doses industriais, para agarrar audiências pelos processos mais singulares; não havia as drogas pesadas a influir negativamente nos horários dos donos dos cafés, que se querem ver livres de tão ingratos clientes, e fecham muito mais cedo; não havia a ameaça da violência urbana que apesar de tudo pesa sobre o comportamento de muita gente que prefere a segurança do lar à incerteza das ruas; nem havia, sobretudo, estes mercantis balcões de agora, onde as pessoas tomam apressadamente café, enquanto outras comem sofregamente uma sopa e pastelinhos de bacalhau, bifanas ou mesmo "pratinhos" de feijoada à transmontana, antes de regressarem ao seu balcão no centro comercial, ou ao escritório.
Dos meus tempos de Universidade, relembro cafés inesquecíveis. Desde logo, o bar da Faculdade de Letras, onde se estudava a vida, quando se faltava às aulas, para se discutir um filme, uma peça de teatro ou um livro, onde se tentava mudar o mundo à medida dos nossos sonhos, ou simplesmente se namorava uma colega, quando o tempo não estava de molde a poder-se sair com ela até junto da verdura do estádio universitário.




Depois, à tarde e à noite, estudavam-se as matérias, em mesas de outros cafés, por apontamentos emprestados por quem assistira ao verbo do Professor. Por mim, que morava então em casa de meus país, na Av. EUA, os mais utilizados eram o Nova Iorque, hoje transformado em banco, e a Grãfina. Mas muitas noites as passava também entre o Monte Carlo e o Monumental, espreitando actores e actrizes com quem se procurava meter conversa, ou sendo lentamente perfilhado por tertúlias de escritores, jornalistas, pintores e excêntricos avulso.
Pouco a pouco, fui subindo avenida acima, até ao VáVá, que então tinha bilhares e cave, e não era ainda metade banco e metade pastelaria. Ali se reunia o grupo de cinéfilos, que eu observava de longe, e o dos cantores, que ouvia na rádio e muito pouco na TV estatal. Com breves incursões pela Suprema, pela Sul-América e pelo Luanda, adoptei o Vává como segunda casa, ali fiz amizades e vi partir amigos, ali conheci amores e desamores, ali escrevi e li, ali pensei guiões e filmes, dali parti com equipas de filmagem para a serra da Estrela, para Sintra, para o Alentejo, ali filmei mesmo uma sequência de um deles, ali vi rodar alguns outros, ali me despedi do 24 e ali saudei o 25, há quem diga que ele é a minha sala de jantar (quanto muito seria a de almoçar, quando não está em obras), e o meu escritório.




O Vává foi mudando com os anos, deixando sempre saudades do velho Vává, de maples de cabedal castanho encostados às paredes, de luz difusa e discreta, de acolhedor conforto. Ali conheci o Manuel Guimarães, que seria meu padrinho de casamento e padrinho cinematográfico, cedendo-me umas bobines de película virgem do seu derradeiro "Cântico Final" para eu realizar uma das minhas primeiras curtas metragens; ali conheci melhor o Manuel de Azevedo, o Villas-Boas, o Rafael, o Pinto Bandeira, o Manuel Costa e Silva, o Sam, o Pedro Bandeira Freire, o João Maria Tudela, o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes, o Fernando Silva, o Mário Damas Nunes, a Acácia Thiele; ali continuo a encontrar o Manel, o Fanan, o Vasco, o Mário, o Rangel, a Lena, o Carlos, e tantos outros, alguns deles agora já acompanhados das respectivas e respectivos, com a prole a gatinhar por entre mesas e cadeiras, ganhando já, se calhar, o mesmo "vício" de ali se encontrarem no futuro; por ali passam também personagens bisonhas de tristes recordações, ali ficam suspensas memórias efémeras ou persistentes, ali se discute o presente do cinema, do xadrez, da televisão e da canção portugueses, ali se debate o futuro da TAP, ali se comentam, à segunda-feira, os "roubos" dos árbitros, invariavelmente a prejudicarem o Sporting e a beneficiarem quem se sabe, por lá passava ao fim da tarde o Frederico, na volta do colégio, para a Cola e o bolo da praxe, ali passa agora o Fred com a namorada actriz e fadista, ali desço com a Eduarda para tomar o café, antes de ir para o cinema ou de regressar a casa, para um serão televisivo.
Os cafés de Lisboa tendem a desaparecer, e os que restam são já sombras de um passado que procuramos apesar de tudo manter vivo, contra a arremetida das leis inexoráveis do comércio, da cobiça dos bancos, do poder da televisão, da proliferação de bares e discotecas. São aliás, os bares e as discotecas que, de certa forma, vieram a ocupar o lugar desempenhado pelos cafés, reunindo tertúlias de amigos, agora ao som da música de momento. Até esta transferência é significativa da mudança dos tempos. Em lugar do café, bebe-se wishky ou vodka; em vez do espreguiçar do pensamento em redor da bica bem quente, gritam-se frases rápidas por entre dois compassos mais trepidantes. Nem melhor, nem pior. "Tudo é feito de mudança", como dizia o poeta. "A nostalgia não é deste mundo", como explicava Signoret. E as bicas bem quentes continuam a incendiar a imaginação dos poetas.
Recordei tudo isto, no VáVá, as 15 horas de terça-feira. Esperava que ela aparecesse. Como estaria? Bem, de certeza, que de si sabe ela tratar-se bem. Bonita de certeza, e a provocar ainda os mesmos “olhares de entendidos” que a analisavam ao pormenor à sua passagem.
Em vez de loura, "A mais loura", os cabelos estão agora cinza. Mas de resto, abriu a porta do café e entrou uma revoada de ar puro. Velho estou eu. Ela lembra aqueles cavalos selvagens que, apesar dos anos que passam para todos, não envelhecem. Vem aí. “Vá.Vá.diando.”

7 comentários:

Isabel Victor disse...

Fiquei presa a este Vá.Vá. Vadiando ... fui-me entranhando nestes cafés seguindo, cerimoniosamente, o "guião" desfiado pelas memórias ... deliciei-me com as conversas, o fumegar das bicas, o ranger das folhas de jornal, os olhares cúmplices, num tempo que escorre ... estranhamente, sem TELEMÓVEIS ! Sem SMSss ! Sem toques ! Que aflição ...

Isabel Magalhães disse...

Um deleite!

Um aconchegar de memórias.







Conheci o Vá-Vá já pelos 19... 20 anos de idade, quando me começaram a permitir maiores voos...

Sim, que eu sou uma citadina da Baixa lisboeta e a minha avó pertencia ao estranho grupo dos que diziam - 'Para lá do Marquês já não é Lisboa!'

inominável disse...

"Desde logo, o bar da Faculdade de Letras, onde se estudava a vida, quando se faltava às aulas, para se discutir um filme, uma peça de teatro ou um livro, onde se tentava mudar o mundo à medida dos nossos sonhos"...

eu sempre tive que me inventar um mundo fora das aulas e da vida académica, cada vez mais insatisfatória e acéfala... sempre faltei às aulas. sempre fui mau exemplo de pontualidade. sempre quis estar nos lugares onde nunca estive, porque só aí se pode ser feliz, fora de sebentas e apontamentos e sabedoria atirada a papalvos que a decoram sem a compreender...

Até fiquei com vontade de ir conhecer o Vá.Vá...

* disse...

o mesmo café outra vez????

que paixão!!!!!!!!!

Anónimo disse...

Belíssimo...e um sorriso meu.

Isabel disse...

Tambem fui uma vá vá dia e noite há uns bons anos atrás... tambem tenho recordações das boas e das más, principalmente boas. não era muito sociável eu nessa altura, sentava-me só lendo, ou preparando-me para ver de seguida os quatro filmes que passavam no Quarteto, ou saindo perturbada de algu dos muitos filmes que sozinha via nessas salas de cinema. Era fã de cinema Francês e pouco sabia ou sei de cinema Português vejo o que os amigos como o Edgar Pêra fazem e sei aquilo que com paciência o meu amor que trabalhou muito em cinema me vai explicando.
por vezes ia à Vá-vá com a minha melhor amiga, lá ficavamos falando horas e a saudade desses dias ficará para sempre.
Quando conseguir multiplicar mais o tempo ou tentar ler um pouquinho menos e ver um pouco mais cinema irei ver o que se fez e se faz de bom cinema Português, de todo não só o dos amigos...
Perdi-me na conversa______________
porque sou assim mas afinal o que eu queria dizer é que tambem eu tenho saudades da Vá-vá, do Quarteto e da minha amiga que nunca mais vi.

Que bom que foi ler-vos e partilhar as vossas memórias e as minhas.

Isabel

Mitsou disse...

Adorei o post, deliciei-me com tão gostosas memórias.
Sou uma frequentadora mais recente do Vává mas já sinto por ele o tal carinho que se entranha.

Irei acompanhando este doce vadiar...